2 de agosto de 2010

II Carta do André Melo a bordo da Sagres

O mau mar,

Ao mar bom, estamos todos habituados, é como andar na rua, uma rua com vista para o mar, uma que se mova com ligeireza. O pior é quando este se cobre de tons cinza, uns mais escuros outros claros, quando o mar parece ganhar vida, espuma, rasgos de água em direcção ao céu, ondas desalinhadas.
A nave que nos transporta, fica cansada, e com ela toda a tripulação. Os olhos ganham olheiras e as mãos frieiras, alguns estômagos ficam vazios e outros ganham a coragem e habilidade de os substituir.
Navegamos de pano às costas, ou praticamente. O vento enche as velas pelo bordo que nós não queremos. A força do vento é 6, muito fresco. A ondulação de 3 metros vem de sudoeste e é exactamente para onde queremos ir. Temperados por estes ingredientes, que em tudo se opõem ao que seria favorável; movemo-nos a marcha lenta, a máquina dá o que pode, não passamos dos 2 nós.
O som do hélice deixou de ser constante e passou a ser semelhante a uma batedeira que revira as claras em busca do castelo. O som não está assim tão sinistro, mas como não tenho música para escutar, fico atento a outros menos úteis. Aproveito para admitir que cheguei ao ponto de saturação em relação à corneta de alvorada matinal, adorava que esta fosse acidentalmente lançada para o mar, a solução seria; o marinheiro vocalizar o som da sua corneta, ou, substituírem esta, por colectâneas de música popular portuguesa, “as doce”: são sete da manhã.

Tokio,

Foi quente e a humidade foi insuportável, mas tempo, tempo em horas e dias, esse foi óptimo. A luz ficou retida como os reflexos de um móbil. Imaginem o contraste entre o ocidente e o oriente espelhado no reflexo das torres de vidro ao som dos vendedores que gritam à porta de superfícies comerciais, conversas e suspiros nesta língua.
Talvez a distancia a que o meu país se encontra deste, seja sinónimo da diferença cultural. Bem sei que Marrocos é já ali a sul e que as semelhanças, também são raras, pelo menos para alguns. Na realidade, eu acho que os portugueses são apenas uma espécie de marroquinos disfarçados, usamos uns costumes europeus.
Aqui a diferença é genuína, o meu mau cheiro faz sentir-se no metropolitano, os japoneses afastam-se. Aqui senti-me enegrecido, não quero com isto fazer qualquer tipo de comentário pejorativamente racista. Foi bom sentir-me estranho, a condição de viajante a baixo custo, e com poucas condições de camarata, temperaram este odor ocidental, deve ser semelhante ao que os nativos sentiram na chegada do jesuíta.
Defino o contraste entre os espaços luz e sombra; obras-primas da arquitectura moderna, torres de vidro, o mercado de peixe no coração de Tokio, local onde a vida marinha é vendida com vida, onde o chão é de pedras irregulares e nunca puderam ser substituídas, este mercado não pode parar, a luz é pouca, entra pelas antigas clarabóias do telheiro alto e escuro, a construção é antiga e em ferro.
A vida ilegal de Shinjuko; as tascas alinhadas por becos e ruas por onde apenas se caminha em fila. São restos, linhas esquecidas, afogadas no meio da imponente arquitectura moderna. Confesso que este foi o meu alvo, não fui a templos com relevância histórica ou turística. Procurei erros, falhas no urbanismo, lugares inevitáveis que sempre foram aproveitados por negociantes, fascinantes, alguns antigos e intocáveis por outros, que não sejam família ou descendência. Quem dita o destino destes lugares, são os clientes costume, seres solitários que esgotam algo, há anos, nestes mesmos bancos sobre a bancada corrida onde apenas cabem 7 ou 8 de cada vez. Comem-se espetadas cozinhadas apenas pelo dono, trocam-se umas palavras num inglês bárbaro, lembram-me que foram os portugueses os primeiros a aqui chegar, ficam estupefactos quando represento por desenho o navio onde estou. O dono grita para o andar de cima, um tubo incrustado na parede, não imagino quem seja a criatura interlocutora, a que vai espetando os víveres no palito, sei que quem os trás deve ser filho, pelo menos tem traços semelhantes. Não podia ter tido melhor companhia neste lugar; o meu amigo bernardo, ambicioso futuro chefe de cozinha, cumpre os requisitos fundamentais de viajar, provar e observar, admite pensar em culinária 90% do tempo, anseia por revolucionar Lisboa. Bernardo Agrela, chefe convidado no hotel de Tokio Four Seasons, veio para dar a provar o que do seu país melhor se apropria nesta cidade.
Na “tasca” de Shinjuko, eu fiquei fascinado por comer pequenas fatias de bife cru, túbaros de porco, espetada de paredes de estômago, o Bernardo, ficou fascinado com o alho francês grelhado, temperado com umas gotas de soja.


AM
Barca, Lat34N Long138E, 30 de Julho de 2010

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